Não é preciso acabar com a ENA

Não é preciso acabar com a ENA

Não é preciso acabar com a ENA

Alex Cavalcante Alves*

Biblioteca da École Nationale d'Administration, em Paris

Logo após a Segunda Guerra Mundial, em outubro de 1945, o presidente francês, general Charles de Gaulle, assinou a ordem de reforma da administração pública francesa, que viriam a culminar com a fundação da École Nationale d’Administration – ENA, assinada por Maurice Thorez, então vice-presidente do Conselho de Ministros e secretário-geral do Partido Comunista Francês. Michel Debré, que viria a ser primeiro-ministro da França pouco mais de uma década depois, foi o primeiro diretor da Escola.

Foi uma iniciativa inovadora, promovendo um avanço expressivo no sentido da profissionalização do serviço público francês, de forma a combater o patrimonialismo e estabelecer um rito meritocrático de acesso a formação para ocupar funções públicas de alto nível.

Corte rápido para 2019. O jornal francês Le Figaro de 16 de abril assinala que o presidente Emmanuel Macron, ele próprio um servidor de carreira formado pela ENA, posteriormente licenciado para atuar no setor privado, iria anunciar o fechamento da ENA em um pronunciamento à nação que acabou tendo que cancelar diante do incêndio na Catedral de Notre Dame.

O discurso, que não é apenas de Macron, é que a instituição seria elitista. Em trechos da fala que não ocorreu, dos quais o jornal tomou conhecimento, o presidente afirmaria que, “se quisermos construir uma sociedade de oportunidades iguais e excelência republicana, precisamos rever as regras de recrutamento, carreiras e abertura do serviço civil sênior”. Pode ser uma resposta política às manifestações dos chamados “coletes amarelos”, que cobram a redução de desigualdades na França. Mas será que essa resposta é realmente adequada?

No próprio discurso ao qual o Le Figaro teve acesso, seria reafirmada a necessidade de a França contar com uma elite burocrática. “Eu acredito na excelência republicana e precisamos de uma elite, tomadores de decisão. Essa elite deve estar à imagem da sociedade e ser escolhida exclusivamente por base meritocrática”. Ou seja, o problema não estaria na existência de uma elite, mas na sua formação.

Acusada por seus críticos de formar uma burocracia desconectada com a população, as críticas à ENA aumentaram conforme seus egressos ganharam prestígio e ascenderam não somente às principais funções do serviço público, como também assumiram funções políticas. Os críticos assinalam que, apesar de aberto a toda a sociedade, o ingresso na escola seria maior entre filhos de executivos dos setores público e privado. A escola rebate esses dados, afirmando ter também entre seus alunos percentual significativo de pessoas de origem simples.

Deve uma instituição que é símbolo de excelência, para o mundo todo, em formação de quadros para o serviço público, ser aprimorada e sofrer mudança de rumos em razão de eventuais disfunções ocorridas no decorrer do cumprimento da sua missão? Sem dúvida. Deve ser extinta? Quanto a esse ponto, discordamos.

Antes de sua criação, o patrimonialismo em termos de recrutamento de pessoal era uma realidade que imperava, não só na França, mas por todo o mundo. Funções públicas eram locais para ocupação pela aristocracia. O sinal que a instituição deu, ao centralizar o ingresso e a formação no serviço público de alto nível francês, com um exame que aprova pelo mérito, serviu de inspiração para todo o globo.

No Brasil, são também da mesma época o Instituto Rio Branco, escola da diplomacia brasileira, e o embrião da Escola de Administração Fazendária – Esaf, voltada precipuamente a formar os servidores das carreiras fiscais, e que só viria a ser formalizada como escola em 1973.

A Esaf foi neste ano de 2019 extinta e incorporada pela Escola Nacional de Administração Pública – Enap, criada na década de 1980 sob forte influência do modelo da ENA, e com a missão original de formar algumas carreiras de elite do ciclo de gestão das políticas públicas no Brasil.

No Estado de Minas Gerais, a Fundação João Pinheiro utilizou a mesma metodologia de ingresso e formação da ENA: após formar-se em Administração Pública na instituição, o aluno será um servidor público do Estado.

Em movimento similar ao ocorrido na França, uma elite de dirigentes públicos também foi formada pela Enap (e, no nível estadual, pela Fundação João Pinheiro), que poderia ter sido acusada da mesma forma que está sendo a ENA, de ser elitista. Todavia, a instituição, respeitada a sua missão original, soube se reinventar a cada década, conforme cada momento nacional e cada orientação governamental.

Atualmente a Enap dialoga com as carreiras de elite, mas também forma, nos diversos cursos que oferece, inclusive à distância, servidores públicos das diversas esferas e que atuam nos diversos pontos da Nação, inclusive os de carreiras menor remuneradas, que geralmente se encontram no primeiro nível de contato com os anseios da população.

O próprio Instituto Rio Branco, escola de formação da diplomacia brasileira, e que já foi por várias décadas acusado de excessivamente elitista, buscou ampliar a diversidade em seus quadros, por meio de uma ação afirmativa destinada a estudantes negros para fomentar seus estudos com vistas ao ingresso na carreira diplomática.

Se há algo que o serviço público brasileiro pode oferecer de lição nesse caso é enaltecer o fato dessas prestigiadas instituições de formação de servidores não terem sido extintas sob alegação de elitismo (o caso da extinção da Esaf não teve qualquer relação com isso, e sim com a fusão dos ministérios da Fazenda e do Planejamento, tendo prevalecido a Enap, mais abrangente) e continuarem sendo instituições respeitadas, prestando relevante serviço de formação de quadros profissionais.

Dessa forma, com relação à ENA, bastaria modernizar sua estrutura e atualizá-la para formar servidores públicos cada vez mais conectados com os anseios dos cidadãos, em lugar de simplesmente extingui-la. O profissionalismo que ela criou para a Administração não vai  justamente ao encontro do que os coletes amarelos reivindicam, provendo serviços públicos bem prestados, por gente capacitada para tanto e que tenha acessado funções não por parentesco, e sim pelo estudo?

Aperfeiçoamentos no modelo e eventuais mudanças de direcionamento são sempre bem vindos. Mas antes de se falar em extinção, deve-se respeitar o legado de qualificação profissional e de ingresso meritocrático que a escola proporcionou, tendo em mente que qualquer entidade que vier a sucedê-la terá que começar do zero a sua história e respeitabilidade, e estará sempre à sombra de uma instituição que é referência para os franceses e para o serviço público em nível mundial.

* Professor de Administração Pública, Alex Cavalcante Alves é fundador do Movimento Gestão Pública Eficiente (MGPE) e autor do livro A recondução do servidor público: doutrina e jurisprudência à luz da Lei 8.112/1990 e da Constituição Federal. É egresso do programa internacional de formação em gestão no setor público da École Nationale d’Administration – ENA e autor do artigo “As Escolas de Governo na Profissionalização da Burocracia Brasileira”.