ITCD e DF – siglas em conflito
Publicado em: 5/5/2013
Autor(es): Leonardo Manzan e Alex Alves*
Em 8 de abril de 2013, o Distrito Federal viveu um dos momentos mais delicados de sua gestão, justamente no mês de celebração dos 53 anos de Brasília. Sob a justificativa de tornar públicos os dados de lançamento do Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCD), tributo de competência estadual, cuja cobrança até pouco tempo não havia sido iniciada no DF, o Governo do Distrito Federal publicou os dados fiscais de mais de 10.000 contribuintes, divulgando os valores de doações no Diário Oficial.
O edital, da lavra do Núcleo de Gestão dos Impostos de Transmissão, unidade da Gerência de Tributos Diretos, por sua vez unidade da Coordenação de Arrecadação Tributária, vinculada à Subsecretaria da Receita, órgão da Secretaria de Fazenda do DF, acabou por quebrar o sigilo fiscal desses contribuintes, em flagrante infringência ao artigo 5º , inciso X, da Constituição Federal de 1988, o qual protege a intimidade do indivíduo.
Reza o referido artigo que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. Não ter seus dados fiscais expostos é garantia fundamental do cidadão. E a violação a essa garantia do cidadão enseja, inclusive, a reparação, pelo Estado, dos danos morais e materiais causados pela infração.
O próprio Código Tributário Nacional, em seu artigo 198, aborda a questão. Afirma o dispositivo que, sem prejuízo do disposto na legislação criminal, é vedada a divulgação, por parte da Fazenda Pública ou de seus servidores, de informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades.
E o meio escolhido para tal divulgação foi justamente o jornal oficial do Distrito Federal, cuja edição virtual é amplamente disponibilizada pela Internet a toda a população, o que caracteriza excesso de exação da administração distrital, que utilizou meio vexatório e gravoso para a cobrança do crédito tributário.
A divulgação também não obedeceu à própria Lei Distrital nº 4.567/2011, que disciplina o Processo Administrativo Fiscal do DF. O artigo 11 da Lei, que trata da intimação no âmbito do processo administrativo fiscal, assevera que esta se dará por servidor competente, provada com a assinatura do sujeito passivo; por via postal, com aviso de recebimento; por publicação no Diário Oficial do Distrito Federal; ou por meio eletrônico, atestado o recebimento mediante certificação digital e envio ao endereço eletrônico atribuído ao contribuinte pela administração tributária.
No entanto, o próprio dispositivo assinala que a intimação quanto aos atos, procedimentos e processos referentes a procedimento administrativo fiscal, crédito tributário não contencioso e mesmo na jurisdição contenciosa só será efetuada por publicação no DODF depois de esgotados os meios previstos por via postal e eletrônica, ressalvadas situações específicas, que não parecem se adequar ao caso em tela.
A Portaria nº 74, editada no dia seguinte, cancelou os editais de lançamento do ITCD, por inobservância às condições estabelecidas no art. 11 da Lei Distrital nº 4.567/2011. O que restou, então, dos editais de lançamento? O custeio, rateado entre o universo de contribuintes do Distrito Federal, das ações de indenização que certamente serão promovidas por aqueles contribuintes que se sentiram lesados com a divulgação de seus dados pessoais.
Ou seja: a Administração, por meio da publicação dos editais de lançamento, expôs dados fiscais de cidadãos, sem observar a legislação e o respeito ao sigilo de seus dados pessoais, e logo em seguida os anulou. Portanto, além de ter ferido direitos fundamentais do contribuinte, que teve seus dados publicamente expostos antes de qualquer tentativa de intimação sobre seu débito, o ato sequer servirá para a cobrança do crédito tributário. Isto é, serviu apenas para causar prejuízo àqueles contribuintes que tiveram seus dados expostos e ao universo de contribuintes que custeou a publicação indevida e pode vir a ter que custear as indenizações.
A Súmula 473 do Supremo Tribunal Federal assevera que a Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade. No entanto, não pode a Administração prejudicar, por atos editados sem a devida observância à lei e aos princípios básicos do Estado Democrático de Direito, milhares de contribuintes, já tão penalizados por arcar com elevada carga tributária, sem receber da unidade federativa serviços públicos à altura.
Caso o erro tenha sido meramente operacional, se traduziu em sinal mais do que evidente de que a cidade que sedia repartições governamentais ligadas ao controle e gestão pública de excelência em nível federal necessita de corpo técnico cada vez mais profissional e qualificado para sua gestão local. Deve a administração local defender a transparência, mas sem penalizar aqueles que, de boa fé, querem estar quites com suas obrigações, sem ver seus dados pessoais expostos indevidamente pelo ente que teria a obrigação legal de resguardá-los.
*Leonardo Manzan é advogado tributarista e professor universitário; e Alex Alves é jornalista, especialista em Direito Público.